29 de janeiro de 2009

Sardinhas

de Efraïn Bacuri


Uma vontade brutal de comer sardinha enlatada brotou-me n’alma enquanto eu caminhava pelo parque. Apertei o passo em busca de um telefone público. A cobrar, liguei pra casa e perguntei a Matilde se havia alguma lata de sardinha na despensa. Não havia. Ela disse que há tempos eu não comprava sardinhas em lata e teve o cuidado de me lembrar os motivos intestinais que me levaram à decisão de suspender a compra. Agradecido pela presteza da secretária, desliguei o telefone recordando-me das intempéries do bucho e, decidido, saí em busca de qualquer estabelecimento em que fosse possível encontrar as benditas e suculentas sardinhas.
Nada do que dissesse a minha memória emocional, ou o que fizessem as minhas entranhas, poderia me dissuadir naquele momento de inspiração. Eu queria sardinhas. Dessas que vem em latas verdes e que me fazem lembrar a infância não muito distante. Aliás, muitas coisas me lembram a infância. Às vezes penso que nunca saí dessa fase da vida. Miro-me no espelho, vejo um rosto barbado, algumas rugas e faço uma careta como quando brigava à toa com um coleguinha. Bobo! O Velho dizia pra eu parar de pensar ou ficaria com mais rugas que a mãe dele. Muitas coisas o Velho ensinou. Apreciar sardinhas foi uma delas.
Na quitanda não tinha. O mercado de iguarias estava fechado naquele horário. A grande concentração de ébrios por metro quadrado de dois botecos não me impediu de arriscar a sorte no balcão em busca do tesouro que satisfaria minha vontade. Em vão. Tentei a loja de conveniência de um posto de combustível. Nada. Perto de casa, lembrei-me da padaria meia quadra à direita. Tentei até aquela que fica três quarteirões pela esquerda. Inutilmente. Se fosse o desejo de comer jaca com açaí, da mulher grávida que não tenho, certamente eu teria encontrado remédio para a vontade insólita. Mas, como era a minha vontade, Deus decidiu que fossem retiradas da face da Terra todas as latas de sardinha!
O jeito foi me conformar e ir pra casa. Perguntei ao porteiro e ao zelador se não tinham uma lata. Riram de mim. Matilde havia partido e deixado um bilhete que não tive o cuidado de ler, tão agitado que estava pela vontade do pescado. Foi quando me lembrei da nova vizinha do andar de cima. Ela tinha cara de quem comia sardinha em lata. Minha desfaçatez fez com que eu lá batesse e, com uma cara de gato sem dono, pedisse o que queria. Batata! Ela tinha. Disse-lhe que assim que comprasse, eu reporia a ela.
A felicidade era tanta que desci correndo pela escada, entrei pela porta da cozinha, peguei o abridor de latas, abri e deliciei-me com elas, mesmo antes de tomar banho. Pança cheia, banhei-me com satisfação de plenitude na alma. Depois fui ler alguma coisa, preparar um chá, e ajeitar o repouso de toda noite...
Acordei suando frio. Facas me atravessavam o abdômen e contorciam-se como agulhas de tricot. Pensei que estivesse morrendo. Tive sensação de que expeliria a alma pelos dutos finais do organismo. Com pressa de chegar ao lavabo, peguei, no caminho, o primeiro papel rabiscado que vi na frente. É um velho hábito ler enquanto a natureza age. O alívio foi instantâneo.
A folha rabiscada era o bilhete da secretária: Efraïn, traga papel higiênico, não temos nem pra remédio. Matilde.

3 comentários:

Everton disse...

Muito bom! Cada vez mais gosto do Sr. Bacuri!

heuaheuaheuahoowW
=D

Unknown disse...

Muito bom meu caro, muito bom mesmo.

Amigo da Nathalie e da Jenifer?

ps: Me tornei Votuporanguense a 2 meses :)

Alkimia Fotografia & Comunicação disse...

Tá vendo? Quem mandou comer sardinha? hehuaehuaheuhaeu! Surpreendo-me com sua habilidade com as letras, Márcio. Precisamos marcar um sarauzinho, urgente...Beijo.