25 de março de 2009

Uma conversa

de Adauto Leva

Sentado ao lado dela sobre o muro, estica o braço e apanha a flor rosa do hibisco à frente deles.
'Era uma vez uma rainha muito bonita e delicada. Muito pudica também, não permitindo a presença de suas aias nos seus momentos mais íntimos, o que contrariava a tradição do reino. Assim, sozinha, ela tira a coroa. Depois, vai tirando calmamente as diversas peças de roupa que compõem os trajes reais. Tira uma peça, depois outra, mais uma e mais outra. Pelada, ela senta na privada para fazer cocô'. E ia finalizar a história apertando o fundinho da flor despetalada do hibisco. Ela interrompeu.
'Que história boba. Você é um cara engraçado, mas às vezes tem umas coisas meio estranhas. Ela não havia gostado da historieta nem de ver a flor ser despedaçada. Ainda assim, ternamente ela pergunta 'por que esta cara de tristeza?'
'E se você me perguntasse por que eu não estou com cara de alegria?'
Ele sempre respondia com uma pergunta às perguntas dela. Na verdade, isso acontecia não só com ela, mas com qualquer outra pessoa que lhe perguntasse algo que o fizesse sentir-se acuado. Conscientemente fazia isso para poder ganhar tempo. Inconscientemente, tentava em vão demonstrar superioridade ao repetir a pergunta com cara de que pergunta estúpida é esta que você está me fazendo?
E naquela tarde sentada junto dele no muro ela reclamou disso, cometendo o único deslize de deixar um tom interrogativo no final da sua frase.
'Eu sempre respondo com perguntas?'
Sim, ele sabia (e reconhecia apenas para si próprio) que respondia com perguntas. Quase sempre. Era um tergiversador. Conhecia bem os atalhos que o levavam à tangente.
'Por que você foi embora sem um tchau ontem?'
Para uma pergunta direta só caberia uma resposta direta. Não responderia perguntando. Diria que foi embora porque quando estava no balcão tomando uma cerveja com um amigo a viu chegando no bar com uuma turma grande, todos muito animados, especialmente ela, entretida em gargalhante bate-papo com um tipo surfista. Ficou com ciúmes e resolveu sair à francesa. Diria isso para ela. Diria que não, nao tenho estofo para essa coisa solta, não consigo ficar no mesmo bar que você e cada um numa mesa, sou careta mesmo e quero andar de mão dadas no parque no domingo à tarde, quero sexo no sábado e macarronada na quinta, sou antiquado e quadrado, Mas ante a pergunta tão direta, respondeu secamente 'não vi você na mesa, acho que estava no banheiro'.
Ela não estava no banheiro. Estava conversando com uma amiga no canto da mesa perto da parede e o vira passar sem nem ao menos dar uma olhadela. Essa sua última resposta fora suficiente, era um tipo estranho e não entendia como pode ter se apaixonado por ele em tão pouco tempo. Mas não havia jeito. O assunto acabara. Ela não diria mais nada, não sentiria mais nada. Não haveria evolução daquilo que ele chamara de coisa solta. Ambos encaravam o nada à frente, entrecortado pelas flores do hibisco balançando ao vento. Para dissipar as nuvens daquela conversa que não foi a lugar nenhum, ela voltou à historia da rainha contada por ele enquanto despedaçava a flor com dedos trêmulos, fingindo um domínio de situação que ele sabia não possuir, 'e a rainha, por que ela não fez cocô?'
'Prisão de ventre, coitada'. E pulou do muro ao chão.





Adauto Leva é meu ídolo! Sim, ele sabe. ^^
O leio desde os tempos que antecederam o Inferno Verde e, lá quando eu estava, Leidiane mandava as coisinhas que ele publicava aqui. Semana passada estive no lançamento do livro dele. Na verdade, relançamento porque a primeira edição foi por outra editora. O livro se chama "Primeiro do Ano", (Ed. Grua, 2.ed., 2008, 76p.).
Fabuloso! São Contos com uma amarração romanesca. Narrativas leves, cheias de encanto cujos temas giram, basicamente, na relação amorosa. Platonismos, desilusões, encantos e desencantos e vivências intensas que marcam a alma.
Tomei a liberdade de publicar este conto aqui, primeiro porque estou sem idéia de post e ainda é cedo para cair na falta de assunto. Na verdade, é catarse pura. Talvez um dia eu poste mais Adauto, ou não.

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