de Amilcar Bettega
O tema do desafio da folha em branco não poderia ser mais apropriado a um escritor que apesar de aceitar (ainda que com ressalvas) a denominação, passa a maior parte do seu tempo não escrevendo do que o contrário. Não poderia ser mais apropriado a alguém que é capaz de gastar horas, dias, semanas, meses até diante de uma folha em branco sem conseguir colocar ali uma só linha. Não poderia cair melhor, portanto, para mim que não sem me sentir um pouco ridículo, vejo-me paralisado, tomado por um sentimento de vacuidade cada vez que tenho que escrever um texto, seja uma rápida comunicação de quinze minutos para um evento literário como este, seja uma página do conto ou do romance no qual, apesar da dificuldade, insisto em continuar trabalhando.
Ao contrário de muitos escritores que são verdadeiras torrentes de palavras, que escrevem muito - e bem - e que mais tarde exercem com sabedoria a depurativa função do corte, eu sou daqueles cujo problema maior é ter alguma coisa para cortar. Assim, quase tudo o que consigo pôr no papel, ali fica. E não poucas vezes é ainda reciclado e reaproveitado em mais de um texto.
Esta escrita em conta-gotas, magra e rarefeita, eu a assumo como a mais pura evidência de minha limitação para escrever. E tal evidência me é o tempo todo jogada na cara, justamente pela oposição direta com o reino das possibilidades infinitas que a página em branco representa.
Quando tudo é permitido, não dá para fazer qualquer coisa. Numa esfera particular talvez uma frase como essa fosse a saída, ou desculpa, para explicar o efeito inibidor que a página em branco exerce sobre mim. Mas tentando generalizar um pouco eu diria que o verdadeiro desafio que a página em branco impõe ao escritor não é apenas o de preenchê-la e, por assim dizer, de vencê-la, mas o de fazê-la uma página nova.
Escrevemos contra o vazio e no vazio, mas sobretudo escrevemos para dar origem a algo que não existia antes de nós e que passa a existir precisamente através do nosso gesto.
Alguém já disse que cada frase é a invenção de um mundo. Ou pelo menos assim deveria ser: o que vai na frase não é a imagem do mundo em palavras mas o mundo que passa a existir através da palavra do escritor. Não se trata, portanto, da realidade transposta para um livro. Tampouco da realidade transfigurada. O que está em jogo é a escrita dessa realidade. É a maneira como a linguagem escrita vai tomar a realidade e comunicá-la, inagurando uma coisa nova.
Um texto deve ter sempre certo caráter fundador, ou pelo menos trazer a marca dessa vocação. Alguma coisa nele deve mostrar que se trata de uma tentativa - nem sempre bem-sucedida, o que não lhe diminui seu valor ético - de buscar algo novo, de fazer de uma outra forma.
Em maior ou menor grau creio que há sempre certa preocupação por parte dos escritores com a originalidade de suas obras. Preocupação legítima e louvável, mas que algumas vezes é traduzida por um esforço para não contar as mesmas histórias e nem sempre é estendida à forma como essas mesmas histórias se organizam - forma esta que, como sabemos, é o que dá corpo a essa coisa meio abstrata que um tanto genericamente chamamos de literatura.
Nunca se conta da mesma maneira, mesmo quando se conta a mesma história. Contar uma história é deformá-la. É dar uma nova forma. Séculos de tradição literária são a prova de uma constante renovação das formas e de um - também constante - esgarçamento dos seus limites. E esta mesma tradição aí está para que dela nos servimos na tentativa de abrir novos caminhos, de continuar a exploração desse reino das infinitas possibilidades.
Respeito e sou mesmo capaz de apreciar os livros que, como dizem as resenhas dos jornais ou às vezes os próprios autores desses livros, limitam-se a contar boas histórias. Boas histórias bem embaladas em fórmulas seguras e já testadas ao longo do tempo, algumas até com prazo de validade vencido. Acontece que por vezes o talento do escritor é maior do que sua disposição para se experimentar fora de rotas já traçadas e o produto do seu trabalho, bem, o produto é um belo e apreciável produto literário. Uma história bem contada - um desperdício de talento, na minha opinião.
O que me comove (e o que me move) na literatura é quando consigo perceber num texto toda a inquietação do seu autor na busca por algo diferente, que ele não sabe exatamente o que é, que ele até pode intuir, mas não mais do que isso. Preciso sentir que o que o leva à frente é o impulso e a alegria infantil de fazer algo pela primeira vez, com todas as hesitações, os temores e, sobretudo, a surpresa que isso acarreta. Porque é na surpresa renovada a cada página que leitor e escritor se juntam para levar adiante a aventura de criar algo novo.
Ao contrário do que se passa na escrita jornalística ou ensaística, onde o conhecimento prévio do tema ou do encadeamento do relato que o autor pretende fazer é necessário e mesmo desejável, na ficção este encadeamento só pode ser orientado pela própria linguagem.
É ela, a linguagem, a única ferramenta da ficção, o que está na origem e no fim do texto. Se não for assim é falso, ou seja, não é ficção. É a frase disposta sobre o papel, essa espécie de voz que canta no interior do texto e que nasce do simples choque entre as palavras, é isso que vai puxar a frase seguinte e que vai acabar por ditar o próprio rumo do relato, a sucessão dos eventos e mesmo a lógica da relação de causa e efeito. A sentença não é muito original mas vale a pena repeti-la: a originalidade não está no tema, mas no que se faz dele.
Avançar sem saber exatamente onde se põe o pé, sentir que o chão escapa, escrever para saber e não porque se sabe, escrever não para contar o que previamente foi elaborado mas para descobrir o que se vai contar, e sobretudo descobrir de que maneira isso pode ser contado. É essa constante incerteza - que necessariamente coloca o escritor em posição de grande fragilidade - que vai dar ao texto a sua verdadeira dimensão literária.
Um dia Kafka escreveu no seu diário: "um escritor escreve sempre numa língua estrangeira". Obviamente não era uma referência ao fato de ele, Kafka, ser um tcheco escrevendo em alemão. Na minha leitura o que ele queria dizer é que a linguagem utilizada por um escritor para criar o seu universo literário não é algo conquistado de antemão, não é uma coisa adquirida, estabelecida para o resto da vida, mas, ao contrário, trata-se de qualquer coisa de extremamente móvel, escorregadia, imprevisível, onde um abismo pode estar à espera logo ali adiante, no final da frase.
Pois quando se faz ficção é preciso sentir sempre essa espécie de desconforto que experimentamos ao usar uma língua estrangeira, quando não raro se adota caminhos enviesados para conseguir expressar o que nos vem ao espírito. Faz-se um uso particular da língua, diferente daquele que faz toda a gente no automatismo próprio das coisas bem assentadas. Escrever é um pouco isso. Um caminho torto. Um olhar de viés. A literatura é e será sempre esse olhar de viés, capaz de abordar o mundo de uma maneira muito particular, mas que só acontece de verdade quando o escritor rejeita as soluções de facilidade e se volta não apenas para o fato que narra, mas para a essência mesmo do fato de narrar.
Como se faz isso que afinal é o texto? Como se constrói o relato? Por que alguém como eu (ou você ou qualquer outro) em determinado momento se coloca diante de uma folha em branco para contar alguma coisa que não sabe exatamente o que é, que não a compreende e que, é muito provável, vai continuar sem compreendê-la mesmo após tê-la contado?
Questionar a estrutura do relato, se indagar sobre a sua forma, o que para alguns representa certo encarceramento formalista e um afastamento do mundo real é, na minha opinião, estar muito mais em sintonia com uma realidade que para ser abordada por escrito exige que nos coloquemos algumas questões essenciais sobre a natureza desta abordagem.
Só assim é que se pode, como queria Baudelaire, ir ao fundo do desconhecido para encontrar o novo. Se não for dessa maneira, o melhor é não fazer, e relegar a palavra ao silêncio branco da página.
Fonte: http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI3611071-EI6781,00-Da+pagina+em+branco+a+pagina+nova.html
O tema do desafio da folha em branco não poderia ser mais apropriado a um escritor que apesar de aceitar (ainda que com ressalvas) a denominação, passa a maior parte do seu tempo não escrevendo do que o contrário. Não poderia ser mais apropriado a alguém que é capaz de gastar horas, dias, semanas, meses até diante de uma folha em branco sem conseguir colocar ali uma só linha. Não poderia cair melhor, portanto, para mim que não sem me sentir um pouco ridículo, vejo-me paralisado, tomado por um sentimento de vacuidade cada vez que tenho que escrever um texto, seja uma rápida comunicação de quinze minutos para um evento literário como este, seja uma página do conto ou do romance no qual, apesar da dificuldade, insisto em continuar trabalhando.
Ao contrário de muitos escritores que são verdadeiras torrentes de palavras, que escrevem muito - e bem - e que mais tarde exercem com sabedoria a depurativa função do corte, eu sou daqueles cujo problema maior é ter alguma coisa para cortar. Assim, quase tudo o que consigo pôr no papel, ali fica. E não poucas vezes é ainda reciclado e reaproveitado em mais de um texto.
Esta escrita em conta-gotas, magra e rarefeita, eu a assumo como a mais pura evidência de minha limitação para escrever. E tal evidência me é o tempo todo jogada na cara, justamente pela oposição direta com o reino das possibilidades infinitas que a página em branco representa.
Quando tudo é permitido, não dá para fazer qualquer coisa. Numa esfera particular talvez uma frase como essa fosse a saída, ou desculpa, para explicar o efeito inibidor que a página em branco exerce sobre mim. Mas tentando generalizar um pouco eu diria que o verdadeiro desafio que a página em branco impõe ao escritor não é apenas o de preenchê-la e, por assim dizer, de vencê-la, mas o de fazê-la uma página nova.
Escrevemos contra o vazio e no vazio, mas sobretudo escrevemos para dar origem a algo que não existia antes de nós e que passa a existir precisamente através do nosso gesto.
Alguém já disse que cada frase é a invenção de um mundo. Ou pelo menos assim deveria ser: o que vai na frase não é a imagem do mundo em palavras mas o mundo que passa a existir através da palavra do escritor. Não se trata, portanto, da realidade transposta para um livro. Tampouco da realidade transfigurada. O que está em jogo é a escrita dessa realidade. É a maneira como a linguagem escrita vai tomar a realidade e comunicá-la, inagurando uma coisa nova.
Um texto deve ter sempre certo caráter fundador, ou pelo menos trazer a marca dessa vocação. Alguma coisa nele deve mostrar que se trata de uma tentativa - nem sempre bem-sucedida, o que não lhe diminui seu valor ético - de buscar algo novo, de fazer de uma outra forma.
Em maior ou menor grau creio que há sempre certa preocupação por parte dos escritores com a originalidade de suas obras. Preocupação legítima e louvável, mas que algumas vezes é traduzida por um esforço para não contar as mesmas histórias e nem sempre é estendida à forma como essas mesmas histórias se organizam - forma esta que, como sabemos, é o que dá corpo a essa coisa meio abstrata que um tanto genericamente chamamos de literatura.
Nunca se conta da mesma maneira, mesmo quando se conta a mesma história. Contar uma história é deformá-la. É dar uma nova forma. Séculos de tradição literária são a prova de uma constante renovação das formas e de um - também constante - esgarçamento dos seus limites. E esta mesma tradição aí está para que dela nos servimos na tentativa de abrir novos caminhos, de continuar a exploração desse reino das infinitas possibilidades.
Respeito e sou mesmo capaz de apreciar os livros que, como dizem as resenhas dos jornais ou às vezes os próprios autores desses livros, limitam-se a contar boas histórias. Boas histórias bem embaladas em fórmulas seguras e já testadas ao longo do tempo, algumas até com prazo de validade vencido. Acontece que por vezes o talento do escritor é maior do que sua disposição para se experimentar fora de rotas já traçadas e o produto do seu trabalho, bem, o produto é um belo e apreciável produto literário. Uma história bem contada - um desperdício de talento, na minha opinião.
O que me comove (e o que me move) na literatura é quando consigo perceber num texto toda a inquietação do seu autor na busca por algo diferente, que ele não sabe exatamente o que é, que ele até pode intuir, mas não mais do que isso. Preciso sentir que o que o leva à frente é o impulso e a alegria infantil de fazer algo pela primeira vez, com todas as hesitações, os temores e, sobretudo, a surpresa que isso acarreta. Porque é na surpresa renovada a cada página que leitor e escritor se juntam para levar adiante a aventura de criar algo novo.
Ao contrário do que se passa na escrita jornalística ou ensaística, onde o conhecimento prévio do tema ou do encadeamento do relato que o autor pretende fazer é necessário e mesmo desejável, na ficção este encadeamento só pode ser orientado pela própria linguagem.
É ela, a linguagem, a única ferramenta da ficção, o que está na origem e no fim do texto. Se não for assim é falso, ou seja, não é ficção. É a frase disposta sobre o papel, essa espécie de voz que canta no interior do texto e que nasce do simples choque entre as palavras, é isso que vai puxar a frase seguinte e que vai acabar por ditar o próprio rumo do relato, a sucessão dos eventos e mesmo a lógica da relação de causa e efeito. A sentença não é muito original mas vale a pena repeti-la: a originalidade não está no tema, mas no que se faz dele.
Avançar sem saber exatamente onde se põe o pé, sentir que o chão escapa, escrever para saber e não porque se sabe, escrever não para contar o que previamente foi elaborado mas para descobrir o que se vai contar, e sobretudo descobrir de que maneira isso pode ser contado. É essa constante incerteza - que necessariamente coloca o escritor em posição de grande fragilidade - que vai dar ao texto a sua verdadeira dimensão literária.
Um dia Kafka escreveu no seu diário: "um escritor escreve sempre numa língua estrangeira". Obviamente não era uma referência ao fato de ele, Kafka, ser um tcheco escrevendo em alemão. Na minha leitura o que ele queria dizer é que a linguagem utilizada por um escritor para criar o seu universo literário não é algo conquistado de antemão, não é uma coisa adquirida, estabelecida para o resto da vida, mas, ao contrário, trata-se de qualquer coisa de extremamente móvel, escorregadia, imprevisível, onde um abismo pode estar à espera logo ali adiante, no final da frase.
Pois quando se faz ficção é preciso sentir sempre essa espécie de desconforto que experimentamos ao usar uma língua estrangeira, quando não raro se adota caminhos enviesados para conseguir expressar o que nos vem ao espírito. Faz-se um uso particular da língua, diferente daquele que faz toda a gente no automatismo próprio das coisas bem assentadas. Escrever é um pouco isso. Um caminho torto. Um olhar de viés. A literatura é e será sempre esse olhar de viés, capaz de abordar o mundo de uma maneira muito particular, mas que só acontece de verdade quando o escritor rejeita as soluções de facilidade e se volta não apenas para o fato que narra, mas para a essência mesmo do fato de narrar.
Como se faz isso que afinal é o texto? Como se constrói o relato? Por que alguém como eu (ou você ou qualquer outro) em determinado momento se coloca diante de uma folha em branco para contar alguma coisa que não sabe exatamente o que é, que não a compreende e que, é muito provável, vai continuar sem compreendê-la mesmo após tê-la contado?
Questionar a estrutura do relato, se indagar sobre a sua forma, o que para alguns representa certo encarceramento formalista e um afastamento do mundo real é, na minha opinião, estar muito mais em sintonia com uma realidade que para ser abordada por escrito exige que nos coloquemos algumas questões essenciais sobre a natureza desta abordagem.
Só assim é que se pode, como queria Baudelaire, ir ao fundo do desconhecido para encontrar o novo. Se não for dessa maneira, o melhor é não fazer, e relegar a palavra ao silêncio branco da página.
Fonte: http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI3611071-EI6781,00-Da+pagina+em+branco+a+pagina+nova.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário